A solução radical de Helsinque para o problema da falta de moradia

Neste texto, um dos mais lidos entre os artigos publicados em 2019 na seção “Cidade”, do jornal britânico The Guardian, o jornalista Jon Henley explica o sucesso da capital finlandesa em resolver o problema da população em situação de rua.

À primeira vista, parece que o artigo trata de uma política específica para essa população. Mas, na verdade, ele contém uma profunda discussão sobre o papel do Estado no mercado habitacional. A forma como a cidade de Helsinque descomodifica a terra urbana e a habitação é a chave para entender as razões pelas quais ali, diferente de outras capitais europeias, se tem conseguido prover moradias de qualidade a praticamente toda a população.

 

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Tatu Ainesmaa faz 32 anos neste verão e, pela primeira vez em mais de uma década, tem uma casa que ele pode realmente chamar de sua: um arejado apartamento de dois quartos em um pequeno quarteirão recentemente renovado em um subúrbio arborizado de Helsinque.

“É um grande milagre”, diz ele. “Já morei em comunidades, mas todo mundo usava drogas e eu tive que sair. Vivi outras experiências ruins: já passei um tempo no sofá do meu irmão, já dormi nas ruas. Nunca tive meu próprio lugar. Isso significa muito para mim.”

No térreo do prédio de dois andares, há uma área de estar e jantar comum, uma cozinha impecável, uma sala de ginástica e uma sauna (na Finlândia, as saunas são basicamente obrigatórias). No andar de cima, moram os 21 inquilinos, homens e mulheres, a maioria com menos de 30 anos.

É importante que eles sejam inquilinos: cada um tem um contrato, paga aluguel e (se necessário) solicita o auxílio-moradia. Afinal, isso faz parte da conquista de um lar e diz respeito a uma política habitacional que tornou a Finlândia o único país da UE em que o número de pessoas sem moradia vem caindo.

Quando a política estava sendo elaborada, há pouco mais de uma década, as quatro pessoas que criaram o que hoje é amplamente conhecido como princípio da Moradia em Primeiro Lugar – um cientista social, um médico, um político e um bispo – chamaram seu relatório Nimi Ovessa (Seu Nome na Porta).

“Estava claro para todos que o sistema antigo não estava funcionando; precisávamos de mudanças radicais”, diz Juha Kaakinen, secretário do grupo de trabalho e líder do primeiro programa. Ele agora administra a Fundação Y, desenvolvendo moradias sustentáveis ​​e acessíveis.

“Tivemos que nos livrar dos abrigos noturnos e dos albergues para estadias de curta duração, que ainda existiam. Eles tinham uma história muito longa na Finlândia e era visível que não estavam tirando as pessoas da condição de sem-teto. Decidimos mudar as premissas.”

Como em muitos países, a falta de moradia na Finlândia vinha sendo combatida, há muito tempo, segundo um modelo de escada: a pessoa sem-teto deveria passar por diferentes estágios de acomodação temporária enquanto buscava colocar sua vida nos trilhos. O apartamento próprio seria a recompensa final.

“Decidimos tornar o acesso à habitação algo incondicional”, diz Kaakinen, “como forma de dizer: olhe, você não precisa resolver seus problemas antes de conquistar uma casa. Em vez disso, a casa deve ser a base segura que facilite a solução de seus problemas.”

Com apoio estatal, municipal e de organizações não-governamentais, apartamentos foram comprados, novos prédios construídos e antigos abrigos foram convertidos em casas para a população sem teto de Rukkila, no subúrbio de Malminkartano, em Helsinque, onde agora vive Ainesmaa.

O objetivo inicial do Moradia em Primeiro Lugar era criar 2.500 novos lares. Criou 3.500. Desde o seu lançamento, em 2008, o número de pessoas em situação crônica de rua na Finlândia caiu mais de 35%. O número de pessoas dormindo nas ruas foi praticamente zerado em Helsinque, onde, no inverno as temperaturas podem cair a -20C. Hoje resta apenas um abrigo noturno com 50 leitos.

A Vice-prefeita de Serviços Sociais e Assistência à Saúde de Helsinque, Sanna Vesikansa, diz que, na sua infância, “centenas de pessoas dormiam nos parques e florestas do país inteiro. Nós quase não temos mais isso. Dormir na rua, agora, é muito raro.”

Enquanto isso, na Inglaterra, os dados do governo mostram que o número de pessoas que dormem nas ruas – uma pequena fração da população total dos sem moradia – aumentou de 1.768 para 4.677, entre os anos de 2010 e 2018. E como a contagem oficial se baseia em uma única noite, as instituições de caridade dizem que o número real é muito maior.

Mas, o Moradia em Primeiro Lugar não trata apenas da questão habitacional. “O acesso a serviços é também crucial”, diz o Prefeito de Helsinque, Jan Vapaavuori, que foi Ministro da Habitação quando o projeto original foi lançado. “Muitos dos que estão sem casa há vários anos são adictos, tem problemas mentais ou necessitam de cuidados médicos contínuos. Tem que haver apoio.”

Em Rukkila, sete funcionários apoiam 21 inquilinos. O gerente adjunto, Saara Haapa, diz que o trabalho varia desde a ajuda prática para lidar com a burocracia e ir em busca de educação, treinamento e colocação profissional, até atividades que incluem jogos, visitas e aprendizado – ou reaprendizado – de habilidades básicas da vida, como limpar e cozinhar. 

“Grande parte do trabalho é realmente conversar, diz Henna Ahonen, assistente social em treinamento. E isso é “mais fácil quando se faz algo junto com essas pessoas, e não realizando uma entrevista formal”, diz Haapa. “A conexão é … mais fácil. Você pode identificar os problemas mais rapidamente.”

Dificilmente qualquer inquilino vem direto da rua, segundo o gerente Haapa. E aqueles que o fazem podem demorar para se adaptar à vida em ambientes fechados. Mas, após uma experiência de três meses, os contratos dos inquilinos são permanentes – eles não podem ser transferidos a menos que violem as regras (Rukkila não permite o uso de drogas, inclusive álcool, mas outras unidades do Moradia em Primeiro Lugar permitem) ou deixem de pagar o aluguel.

Alguns ficam sete anos ou mais; outros partem após um ou dois anos. Em 2018, seis inquilinos se mudaram para levar vidas totalmente independentes, segundo Haapa. Um deles agora é faxineiro e mora em seu próprio apartamento; outro fez formação na área de culinária durante seus cinco anos de permanência em Rukkila e, no momento trabalha como chef.

Ainesmaa está em um programa de profissionalização, de dois anos, desenhado para ser um caminho em direção ao emprego. Ele diz que a oportunidade para dar um rumo à sua vida é algo inestimável. “Olha, eu não possuo nada. Eu estou no espectro do autismo. Às vezes eu acho que as pessoas são minhas amigas e então elas me roubam. Fui enganado … muito. Mas agora eu tenho meu lugar. É meu. Eu posso construir algo.”

O Moradia em Primeiro Lugar custa dinheiro, é claro: a Finlandia gastou €250 milhões criando novas casas e contratando 300 novos funcionários de apoio. Mas, um estudo recente mostrou que a economia com assistência médica de emergência, serviços sociais e com o sistema de justiça totalizavam até €15 mil por ano, para cada sem-teto tornado inquilino em moradia com assistência adequada.

O interesse de outros países nessa política tem sido excepcional, da França á Austrália, diz a Vice-Prefeita Vesikansa. O governo britânico está financiando projetos-piloto em Merseyside, West Midlands e Greater Manchester, cujo prefeito do Partido Trabalhista, Andy Burnham, deve ir a Helsinque para ver essa política em ação.

Mas, se o Moradia em Primeiro Lugar está funcionando em Helsinque, onde vive a metade dos sem-teto do país, é porque faz parte de uma política habitacional muito mais ampla. Projetos-piloto não são suficientes, diz Kaakinen, administrador da Fundação Y. “Sabemos o que funciona. Pode-se ter todo tipo de projeto, mas se não houver casas de verdade… Um estoque adequado de habitação social é crucial.”

E, nesse aspecto, a capital finlandesa tem sorte. Helsinque possui 60.000 unidades de habitação social; um em cada sete habitantes vive em moradias de propriedade da cidade. A cidade também é proprietária de 70% das terras urbanas, administra sua própria empresa de construção e tem como meta atual a de construir 7.000 novas casas – de todas as categorias – por ano.

Em cada novo distrito, a cidade mantém um mix habitacional rigoroso para limitar a segregação social: 25% de habitação social, 30% de compra subsidiada e 45% do setor privado. Helsinque também tem garantido que não haja diferenças externas visíveis entre o estoque de moradias privadas e públicas e, além disso, não estabelece um teto de renda para seus inquilinos.

Ademais, a cidade tem investido pesadamente na prevenção contra o crescimento do número de pessoas sem-teto, mediante a montagem de equipes para aconselhar e ajudar inquilinos em vias de perderem suas casas e a redução, pela metade, do número de despejos de residências e propriedades sociais da cidade entre 2008 e 2016.

“Nós possuímos grande parte da terra, temos o monopólio de zoneamento, administramos nossa própria empresa de construção”, diz Riikka Karjalainen, diretora sênior de planejamento. “Isso ajudou muito o Moradia em Primeiro Lugar porque simplesmente não há como erradicar a falta de moradia sem uma política habitacional séria e abrangente.”

A Finlandia não resolveu completamente a situação dos sem-teto. Em todo o país, cerca de 5.500 pessoas ainda são oficialmente classificadas como desabrigadas. A esmagadora maioria – mais de 70% – vive temporariamente com amigos ou parentes. Mas o planejamento do setor público e o esforço coletivo ajudaram a garantir que, como uma maneira de reduzir a falta de moradia a longo prazo, o Moradia em Primeiro Lugar seja um sucesso. “Ainda não estamos lá, é claro, diz Vesikansa. “Nenhum modelo é perfeito, ainda temos falhas. Mas tenho orgulho de termos tido a coragem de tentar.”

O prefeito concorda. “reduzimos o número de desabrigados de longa duração em uma quantidade notável”, diz ele. “precisamos fazer mais – melhor apoio, melhor prevenção, melhor diálogo com os moradores: as pessoas realmente apoiam essa política, mas nem todo mundo quer uma unidade em sua vizinhança… Mas, sim, podemos ter muito orgulho”.

 

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Link para o original: https://www.theguardian.com/cities/2019/jun03/its-a-miracle-helsinkis-radical-solution-to-homelessness#
Livre tradução de Ana Paula Carvalho