Retome as ruas do automóvel

RETOME AS RUAS DO AUTOMÓVEL
Justin Gillis & Heather Thompson

 

Este artigo foi publicado no New York Times e contém uma oportuna reflexão sobre as cidades em tempos de coranavírus.

Justin Gillis, é ex-repórter ambiental do Times e colaborador da seção Opinião desde janeiro de 2018. Heather Thompson, é diretora  executiva do ITDP – Institute for Transportation & Development Policy, organização não governamental que atua também no Brasil, promovendo o transporte sustentável e equitativo em todo o mundo.

O Núcleo de Estudos e Projetos da Cidade – CENTRAL, da PUC-Rio, fez uma livre tradução do texto e convida ao debate sobre os temas aqui abordados.

 

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Desde que as cidades existiram há 5.000 anos, as epidemias moldaram seu destino.

As pragas enfraqueceram o Império Romano e podem ter ajudado a derrubá-lo. Os esgotos que limparam uma Londres imunda no século 19 foram construídos como resposta direta a um surto de cólera. Muitos dos grandes parques urbanos, incluindo o Central Park, na cidade de Nova York, foram planejados de maneira semelhante após as epidemias, a fim de proporcionar mais espaço abertos aos seus habitantes.

Hoje, a pandemia de coronavírus, com todo o seu horror, abre a perspectiva de mudanças urbanas. As cidades de repente veem a possibilidade de corrigir seu maior erro do século 20: a cessão de muito espaço público ao automóvel.

As cidades precisam aproveitar esse momento e se mover na velocidade da luz. Precisamos encontrar um melhor equilíbrio entre os carros em nossas ruas e os ciclistas e pedestres que, por décadas, foram negligenciados e empurrados para as margens.

Em todo o mundo, cidades grandes e pequenas já entraram em ação. Em Medellín, a inovadora cidade colombiana situada nos Andes, os trabalhadores estão aproveitando as faixas de rodagem e colocando tinta amarela para significar uma mudança: carros foram despejados e as faixas agora são reservadas aos ciclistas. Em Kampala, capital de Uganda, as autoridades fecharam ruas, incentivaram o ciclismo e aceleraram a construção de novas ciclovias e passarelas. Nas cidades europeias, as “ciclovias corona” se tornaram a nova norma.

Em Nova York, a cidade respondeu às demandas da comunidade, comprometendo-se a reservar 160 quilômetros de vias, nas próximas semanas, para pessoas a pé ou de bicicleta, fechando as ruas durante o dia. Deixar as pessoas jantar em mesas no meio da rua pode ajudar na sobrevivência dos restaurantes de Nova York. A cidade de Oakland, Califórnia, decidiu fechar quase 10% de suas ruas. E no meio do país, Kansas City, Missouri, foi uma das primeiras a limitar o tráfego e transformar vagas em miniparques para ampliar o serviço de restaurante.

Este é um momento de ouro para o movimento conhecido como urbanismo tático. Mais de 200 cidades já anunciaram o fechamento de vias em resposta à pandemia de coronavírus. Milhares de cidades ainda precisam agir de maneira ousada. Caso contrário, podem perder o que seria uma oportunidade única na vida.

As circunstâncias que deram origem a essa situação são lamentáveis, é claro, assim como as epidemias de cólera que alteraram as cidades no século XIX. Mas, hoje, o ciclismo está crescendo à medida que as pessoas buscam meios mais fáceis de se locomover, com ruas de tráfego reduzido, que as tornam mais seguras e agradáveis. As cidades estão descobrindo que podem fazer movimentos ousados ​​para acomodar todos os ciclistas e caminhantes, porque os motoristas que normalmente se opõem ao fechamento de ruas estão em suas casas.

A supressão do tráfego automotivo está nos dando uma ilustração vívida dos possíveis benefícios futuros da limpeza de nossas cidades. A poluição do ar, que mata milhões de pessoas todos os anos, diminui em quase todos os lugares. Na Cidade do México, os índices das menores e mais mortíferas partículas caíram pela metade. O governo indiano informou publicamente que, em Nova Délhi, vários índices de poluição caíram em até 70%; e em outras cidades, as crianças indianas conseguem ver montanhas distantes pela primeira vez em suas vidas.

A maioria dos fechamentos de vias anunciados até agora foram considerados temporários, com a intenção de durar até que a pandemia afrouxe sua incidência. A disposição dos motoristas em deixar seus carros estacionados certamente não vai durar. O que as cidades podem fazer para garantir os ganhos recentes, na medida em que a economia for reabrindo?

Para responder a isso, voltamos a uma expressão que já mencionamos: urbanismo tático. Nas últimas duas décadas, esse movimento tem aproveitado oportunidades para melhorar a vida urbana.

Às vezes, o governo da cidade é o instigador, como em 2009, quando Nova York fechou vários quarteirões da Broadway, uma das ruas mais movimentadas da cidade. Às vezes, os cidadãos empregam táticas mais audazes – convertendo um terreno baldio em um parque ou jardim em miniatura, por exemplo, ou lançando cones de trânsito laranja no meio da noite para criar uma ciclovia.

A ideia básica é mostrar às pessoas os benefícios de uma mudança, ainda que temporária. Isso pode alterar a dinâmica política em favor de uma transformação mais permanente. Você pode apostar que os pais cujos filhos entediados podem repentinamente andar de bicicleta nas ruas de Oakland estão vendo todo esse conjunto de questões com novos olhos.

Quando a Broadway foi fechada, milhares de nova-iorquinos inundaram a rua, sentando-se deliciosamente em cadeiras de gramado baratas que a cidade havia colocado na calçada. A partir desse momento, a visão de uma Broadway para as pessoas se estabeleceu e os quarteirões da Broadway pela Times Square foram fechados ao trânsito por uma década.

Da mesma forma, projetos urbanistas táticos em todo o mundo levaram a ruas fechadas, novos parques e muitas outras comodidades. A grande maioria desses projetos envolve retomar o espaço público que, hoje, é do automóvel. Um terço ou mais do espaço em qualquer cidade é dedicado às ruas e, em meados do século passado, muito disso foi convertido em faixas de tráfego e vagas de estacionamento gratuitas.

Hoje, em meio à tragédia que vivemos, fomos lançados, talvez, na maior oportunidade de todos os tempos para o urbanismo tático. Com o pouco tráfego nas ruas, as pessoas estão sentindo como, em tempos normais, são dominados pelos carros, colocando em risco a vida dos pedestres e ciclistas espremidos em pequenas faixas marginais. Essa situação nunca foi sensata ou moral, mas, até agora, consertá-la era politicamente impossível em muitas cidades.

Uma virada viral do destino nos deu a chance de alterar o equilíbrio, criando ruas que funcionem para todos. As cidades que pensavam em mudanças de faixa ou fechamento de ruas antes da pandemia deveriam se mover para esse experimento; e as mais populares deveriam se tornar permanentes. Lideranças governamentais devem prestar atenção especial aos bairros pobres, que tendem a ser esquecidos, mas cujas pessoas têm o direito de andar de bicicleta e andar como qualquer outra pessoa. Esses bairros costumam ser privados de parques ou campos esportivos; portanto, uma rua com pouco ou nenhum carro pode ser uma dádiva para as crianças.

No final, recuperar ruas não será suficiente para garantir a melhoria da qualidade do ar e outros benefícios. Toda cidade precisa de um programa abrangente de controle de carros. Algumas, como Londres, já estão banindo os veículos mais poluentes, e outras chegaram ao ponto de declarar que não permitirão mais motores a combustível após 2030 ou 2035. Nessas cidades, ou se dirigirá um carro elétrico ou não se dirigirá.

As cidades precisam seguir o exemplo de Londres, Cingapura e, mais recentemente, de Nova Iorque, que aprovaram regras e multas tão rígidas para evitar o ongestionamento que desencorajam a condução desnecessária, e puderam investir no transporte de massa e na construção de faixas mais protegidas para caminhadas e ciclismo.

As cidades precisam ser projetadas para o bem-estar e a saúde das pessoas, não para os carros. Não temos tempo a perder. Agora é o momento das cidades. Imaginem esse futuro e comecem a desejá-lo.

 

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Heather Thompson ( @hfthompson_ ) é a diretora executiva do Institute for Transportation & Development Policy, que promove o transporte sustentável e equitativo em todo o mundo.

Justin Gillis, ex-editor do Times e repórter ambiental, é colaborador da seção Opinião desde janeiro de 2018. Ele está trabalhando em um livro sobre política energética.

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